“Atira, meu filho; é bandido”
“Atira, meu filho; é bandido”. Essa foi uma das frases proferidas por Marcelo Rezende, do programa Cidade Alerta, da Rede Record, ao transmitir, ao vivo, uma perseguição policial a dois homens que seriam suspeitos de roubo. A ação culminou com um tiro disparado à queima roupa pelo integrante da Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas (Rocam) da Polícia Militar de São Paulo contra aqueles que, repetidas vezes, foram chamados de “bandidos”, “marginais” e “criminosos” pelo apresentador.
https://youtu.be/wBWHATlICgM
A cobertura, feita em junho do ano passado, foi objeto de representação elaborada pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação e pela ANDI – Comunicação e Direitos ao Ministério Público Federal em São Paulo. As organizações apontaram que houve desrespeito à presunção de inocência e incitação à desobediência às leis ou decisões judiciais.
Ação civil pública contra o Programa Cidade Aberta – Rede Record e União Federal
Em decorrência, o Ministério Público Federal em São Paulo ajuizou ação civil pública contra a Rede Record e a União, devido à incitação à violência durante exibição ao vivo de uma perseguição policial. Para o autor da ação, o procurador da República Pedro Antonio de Oliveira Machado, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, as imagens mostradas eram inapropriadas para o horário e não respeitavam a finalidade educativa e cultural a que estão subordinadas as emissoras de televisão.
A televisão (radiodifusão de sons e imagens) é um veículo de comunicação social que, de acordo com a Constituição Federal (art. 21, XII, “a”), é um serviço público da União, no caso, explorado por empresa privada (Rede Record), mediante concessão do Poder Público
Para o procurador, os princípios da liberdade de imprensa e de expressão, antes de pertencerem a qualquer veículo de imprensa ou mídia, são conquistas da sociedade, exercitáveis com vista ao bem comum, isto é, a serviço da coletividade, ante o que consta no preâmbulo da Constituição sobre os objetivos do Brasil como Estado Democrático de Direito, que é assegurar o “bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”
Assim, mesmo considerada a liberdade de imprensa e de expressão, a programação televisiva deveria observar os valores e princípios constitucionais, dentre eles a inviolabilidade do direito à vida, a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a promoção do bem de todos, a prevalência dos direitos humanos e, enfim, o repúdio à violência, por ilegalidade ou abuso de poder.
Na avaliação do procurador o teor do discurso do apresentador tem forte relevância social já que ele é um formador de opinião e, por esse motivo, deveria prezar por não incitar a violência e zelar pela dignidade humana.
O MPF requer que a Rede Record veicule uma retratação, por dois dias úteis, no mesmo horário do programa Cidade Alerta, em que deixe claro que a emissora não compactua com o posicionamento de hostilidade e incitação à violência, adotado pelo apresentador Marcelo Rezende durante a transmissão da perseguição policial aos suspeitos. Em caso de descumprimento, a emissora deverá pagar multa de R$ 97 mil por dia. A retratação deve durar o mesmo tempo da reportagem exibida em 23 de junho.
Na ação, o MPF pede também que a União fiscalize o programa, sob a perspectiva do que é estabelecido no artigo 221 da Constituição Federal, que prevê a observância dos seguintes princípios para a produção e programação das emissoras de rádio e tv: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Questionada sobre o ocorrido, a Rede Record alegou que pelo fato de ter sido uma transmissão em tempo real não havia possibilidade de escolher as imagens que seriam veiculadas e também não era possível prever o desfecho da ação policial. A emissora ainda se justificou argumentando que a nitidez das imagens estava prejudicada, sendo impossível identificar as pessoas envolvidas na ação. Para o MPF, no entanto, ao autorizar e transmitir a perseguição, a Rede Record assumiu a responsabilidade pelo resultado. Além disso, diferente do que alegou, a emissora teve a opção de escolha, uma vez que voltou a exibir as imagens gravadas da perseguição.
A ação pode ser consultada no site http://www.jfsp.jus.br/foruns-federais/ sob o número o 0026302-55.2015.4.03.6100.
A Violação de Direitos na Mídia Brasileira
Pesquisa inédita, que faz parte de um amplo programa de monitoramento de violações de direitos em veículos de comunicação brasileiros, realizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) em colaboração com o Intervozes, a Artigo 19 e o Ministério Público Federal. O estudo aponta que pelo menos 12 leis brasileiras e 7 tratados multilaterais são desrespeitados cotidianamente por esses programas, entre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A análise de 28 programas veiculados por emissoras de rádio e televisão em dez estados diferentes, ao longo de 30 dias, constatou que 1.936 narrativas possuíam violações. Entre elas: 1.709 casos de exposição indevida de pessoa; 1.583 de desrespeito à presunção de inocência; 605 de violação do direito ao silêncio; 151 ocorrências de incitação à desobediência ou desrespeito às leis; 127 de incitação ao crime e à violência; 56 casos de identificação de adolescentes em conflito com a lei; 24 registros de discurso de ódio e preconceito; 18 ocorrências de tortura psicológica e degradante, entre outros crimes.
Os números servem para comprovar práticas que podem ser observadas praticamente sempre que ligamos o rádio e a TV, especialmente no período do almoço ou no turno da tarde, já que, por serem considerados jornalísticos, os tais policialescos não são submetidos à classificação indicativa – permanecendo, assim, facilmente acessíveis às crianças e aos adolescentes. Poucas são as emissoras que não aderiram à fórmula que combina exploração de sensações (a começar pela dor de quem passa por situações violentas), merchandising e populismo. A estética (e, portanto, a ética) deles penetra também os tradicionais programas jornalísticos, inclusive porque estes passaram, na última década, a buscar responder ao crescimento da audiência daqueles.
Como consequência, temos veículos que levam a praticamente todos os lares brasileiros discursos que criminalizam, sobretudo, setores cujos direitos são historicamente negados, como os jovens negros suspeitos de atos infracionais. Discursos que criam estereótipos sobre comunidades ou populações inteiras, que tratam a violência de forma superficial e que apresentam como resposta aos problemas a redução da idade penal e outras expressões do Estado penal.
Entre 2013 e 2014, apenas duas emissoras de TV foram multadas por violações cometidas por programas policialescos: a TV Band Bahia, multada em R$ 12.794,08, e a TV Cidade de Fortaleza, que pagou R$23.029,34. No primeiro caso, a apresentadora Mirella Cunha humilhou um suspeito negro por oito minutos. No segundo, dois programas da emissora veicularam o estupro de uma menina de nove anos de idade.
Nas duas situações, a ação do Ministério ocorreu após denúncia e pressão por parte da sociedade civil. Conforme Helena Martins, jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional de Direitos Humanos, “para enfrentar essa lógica, é necessária, de imediato, uma mudança de postura dos órgãos responsáveis pela fiscalização dos conteúdos veiculados pelas emissoras de rádio e televisão, em especial o Ministério das Comunicações (MiniCom). Hoje, o Ministério tem recuado de seu poder fiscalizador e sancionador. Além de não monitorar os programas, atua apenas diante de denúncias ou de casos com grande repercussão pública”.
Guia de monitoramento: Violações de direitos na mídia brasileira
A ANDI elaborou o Guia de monitoramento de Violações de Direitos na Mídia Brasileira, no qual é realizado um levantamento das violações a direitos na mídia nacional.
No Volume I, há um guia prático para identificar violações de direitos no campo da comunicação de massa, com exemplos extraídos de programas de rádio e TV de todas as regiões do País, e um apanhado inédito dos dispositivos legais que buscam harmonizar o direito à liberdade de expressão com outros direitos dos cidadãos, como o de terem a imagem e a privacidade respeitadas.
http://intervozes.org.br/publicacoes/guia-violacoes-de-direitos-humanos-na-midia-volume-i/
No Volume II, são reunidos artigos que refletem o teor dos debates travados pela sociedade civil em relação às produções em foco. São reflexões de estudiosos, militantes e observadores em geral do campo, abrangendo diferentes perspectivas, a partir mesmo do perfil dos autores, oriundos da academia e de organizações que defendem a liberdade de expressão e o direito à comunicação.
Fonte: MPF, ANDI e Carta Maior