O crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal, configura tipo penal aberto. Portanto, nem toda desobediência pode ser considerada crime. Com este fundamento, a Turma Recursal dos Juizados Especiais Criminais do Rio Grande do Sul manteve absolvição de um homem denunciado pelo crime de desobediência. Ele teria se recusado a ‘‘posicionar-se para a revista na parede’’, conforme ordenado por um policial.

Segundo o processo, policiais investigavam uma ocorrência de arrombamento, na noite do crime, quando toparam com o denunciado, correndo, em “atitude suspeita”. Após ignorar ordem de parada, para averiguação e revista, o homem foi abordado. Depois de identificado e revistado, foi liberado. Com base na ocorrência policial, acabou denunciado pelo Ministério Público pelo crime de desobediência.

Ouvido no juízo de primeiro grau, o denunciado negou desobediência à ordem de parada. Afirmou que as ‘‘brigadianas’’ é que foram truculentas ao abordá-lo, já lhe atribuindo a prática de arrombamento, dizendo: ‘‘é tu, é tu’’. Na verdade, alegou, estava correndo para pegar o táxi que o levaria de volta a outra cidade próxima — versão confirmada em juízo.

In dubio pro reo – Na dúvida em favor do réu

O juiz Rodrigo de Azevedo Bortoli, da 1ª Vara Criminal de Lajeado, ficou em dúvida sobre a configuração do delito, já que não havia provas nem da versão da história contada pelo réu nem da que foi apresentada pelas policiais. Portanto, a denúncia era inepta e o réu foi absolvido.

Por outro lado, destacou o julgador, os autos mostram que a revista foi efetivamente cumprida pelas PMs, ainda que com certa relutância inicial do réu.

Na sentença o magistrado de justificou:

 “Supõe-se a todo perseguido a irritação e a intolerância ao ser abordado pela polícia. Óbvio e compreensível que, da parte dos agentes públicos, também não exista uma delicadeza parisiense no cumprimento de diligências. Não apenas pela circunstância do local, mas pela recepção nada calorosa aos policiais sujeitos às intempéries da violência de rua. Por si só, tais conjeturas não excluiriam o crime, mas indicam que deve haver um significativo grau de certeza/contundência para sua atestação”.

O Ministério Público interpôs recurso.

Ordens Ilegais

Conforme o relator, Dr. Edson Jorge Cechet, “a denúncia atribui ao réu a prática do crime de desobediência, que consistiu, conforme prova oral judicializada, na recusa de posicionar-se para revista, conforme técnica de abordagem policial”.

Segundo o magistrado:

Há que se referir, nessa parte, o princípio da legalidade. Não são poucos os casos de policiais que determinam comportamentos não previstos em lei: encostar em muros; em paredes; abrir ou afastar as pernas; ajoelhar no solo e colocar as mãos sobre a cabeça; deitar no chão, entre outros. São práticas em que não se permite vislumbrar coerência com os princípios legais que norteiam o direito positivo brasileiro, embora, não se olvide, possam ser adequadas a uma ou outra situação específicas, mas que não obrigam, necessariamente, a seu cumprimento pelo cidadão.

….

Ordem legal é ordem prevista em lei, ou de acordo com a lei.

Todavia, não há lei que obrigue, por exemplo, a tomar determinada posição para revista, como encostar as mãos ou o próprio corpo, numa parede, num muro, numa árvore, num veículo, apoiar-se neles, deitar no chão, ficar de joelhos aguardando que a polícia proceda à conferência física de documentos pessoais em relação aos dados constantes do sistema virtual, como já se viu muitas vezes em noticiários das redes de comunicação nacionais. Tais procedimentos servem unicamente para favorecer a técnica policial em eventual revista pessoal, visando também a garantir, especialmente, a concretude do trabalho policial e a segurança dos milicianos. Muitos cidadãos já foram deixados durante longo tempo em tais posições, escorados, ajoelhados ou deitados de barriga para baixo, de frente sobre o solo.

Dignidade da Pessoa Humana

Adiante o Magistrado tratando da proteção a dignidade da pessoa humana registrou que:

Vejo, também, em procedimentos tais, afronta aos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, previstos no art. 1º da Constituição Federal, fundamentos do Estado Democrático de Direito, “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.

Em conclusão assentou :

…a Constituição Federal prevê que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa em virtude de lei” (art. 5º, inc. II). Nesse contexto, portanto, não há como obrigar o cidadão a adotar a postura recomendada ou determinada, nela permanecendo, pena de incorrer em desobediência.

Não há lei que obrigue a tanto.

Se a ordem desobedecida fosse de apresentar documentos, de permitir revista, não haveria como negar provável tipicidade do fato, observados os requisitos integrativos pertinentes. Porque a revista pessoal, quando justificadas as razões, ou “quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior”, tem previsão legal, independe de mandado e faz parte das atribuições dos agentes policiais

…..

Por tais razões, voto no sentido de negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a absolvição do réu, modificando apenas o fundamento para atipicidade de conduta, com base no art. 386, III, do Código de Processo Penal.

A decisão foi unanime.

Processo n. 71006375364 - TJRS
Processo n. 71006375364 – TJRS