O promotor de Justiça do Rio Grande do Sul Theodoro Alexandre ofendeu uma adolescente de 14 anos durante uma audiência. Ele acusou a menina, que foi estuprada pelo pai e estava no local na condição de vítima, de mentir e de ter “facilitado” a agressão.O caso ocorreu em fevereiro de 2014, na cidade de Júlio de Castilhos, RS.
Na ocasião, tramitava um processo contra o pai da menina, acusado de praticar abusos sexuais e de engravidá-la. Segundo a denúncia do Ministério Público, o homem, de 39 anos, cometeu os atos entre janeiro de 2011 e outubro de 2012. A vítima, à época, tinha 13 anos.
“Por diversas vezes, de modo reiterado e continuado, o denunciado manteve relações sexuais e praticou atos libidinosos com sua filha. Para tanto, convidava a menina para fazer viagens de caminhão com ele, oportunidade em que estacionava o veículo em locais ermos”, diz a denúncia do MP, de março de 2013.
Quando a gravidez foi descoberta e o caso passou a ser investigado, a vítima contou às autoridades detalhes da violência sexual. Ela obteve autorização judicial para fazer um aborto, realizado em Porto Alegre. No entanto, depois disso, ela foi ouvida novamente na Justiça, mas negou os abusos. A adolescente teria sido pressionada pela família, segundo a desembargadora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, que foi a relatora do processo.
As ofensas foram realizadas durante a instrução do processo que tramitava contra o pai da adolescente, acusado de abusar da menina e de engravidá-la. A menina contou aos investigadores que sofria abusos constantes do pai. Ela, então, ganhou autorização para fazer o aborto.
Depois disso, a menina mudou a versão e negou o abuso do pai — ela estaria sofrendo pressões familiares. Por conta dessa mudança na história, o promotor ofendeu a vitima.
O promotor Theodoro Alexandre afirmou durante a audiência:
Tá, assim ó, tu pegou e tu fez, tu já deu um depoimento antes (…), tu fez eu e a juíza autorizar um aborto e agora tu te arrependeu assim? Tu pode pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é auto suficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Sabe que tu é uma pessoa de muita sorte, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na FASE, zzz e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá.
Em outro momento da audiência o promotor disse:
Tu teve coragem de fazer o pior, matou uma criança, agora fica com essa carinha de anjo. Eu vou me esforçar o máximo pra te pôr na cadeia. Além de matar uma criança, tu é mentirosa? Que papelão, hein? Vou me esforçar pra te ferrar, pode ter certeza disso, eu não sou teu amigo.
A fala foi gravada em imagem e áudio.
O processo contra o pai, preso desde 2015, seguiu tramitando e ele foi condenado em maio de 2016 a 27 anos de prisão por estupro. A defesa recorreu ao Tribunal de Justiça e, em agosto, a pena foi reduzida para 17 anos, e o homem segue preso.
Mas ao analisar o recurso, os desembargadores da 7ª Câmara Criminal ficaram indignados com a fala do promotor, e o caso veio à tona.
Desembargadores pedem que condutas sejam apuradas
No julgamento do recurso, o pai da adolescente teve a pena reduzida de 27 para 17 anos. Atualmente, ele está preso.
Ao analisar o processo, os desembargadores da 7ª Câmara Criminal consideraram o caso como “lamentável”.
Segundo a desembargadora Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, o promotor tratou a jovem “como se ela fosse uma criminosa, esquecendo-se que só tinha 14 anos de idade, era vítima de estupro e vivia um drama familiar intenso e estava sozinha em uma audiência”.
Por não ter interferido no depoimento da vítima, a postura da juíza que conduzia o caso, Priscila Gomes Palmeiro, também foi questionada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Conforme o desembargador José Antônio Daltoé Cezar a conduta do promotor “apresentou-se ilegal e inadmissível”.
Segundo o magistrado:
Equivocou-se também o Dr. Promotor de Justiça, gravemente, quando referiu à vítima que ela seria uma criminosa, teria matado uma pessoa, como se ela tivesse praticado um homicídio
O feto humano, embora seja protegido, por institutos de direito civil e penal, ainda não é uma pessoa, o que somente ocorrerá quando vier a nascer, com vida.
Na decisão, o desembargador Daltoé Cezar pediu que o tribunal pedisse desculpas à menina:
Transitada em julgado esta decisão, seja encaminhada cópia deste acórdã
o à vítima e a seu representante legal para que se cientifique que a 7ª Câmara Criminal lamenta profundamente a forma como foi ela recepcionada pelo sistema de Justiça, e que tem ela, se quiser, o direito de postular indenização pecuniária junto ao Promotor de Justiça, uma vez que mais do que falta grave, agiu este com dolo ao lhe impor ilegais constrangimentos.
Além disso, o desembargador Daltoé Cezar propôs que as atuações do promotor e da juíza que conduzia a audiência, Priscila Gomes Palmeiro, sejam apuradas pelo Conselho Nacional do Ministério Público, Procuradoria-Geral de Justiça (PGJ) e Corregedoria-Geral da Justiça.
A Corregedoria Nacional do Ministério Público instaurou uma reclamação disciplinar contra o promotor de Justiça. De acordo com o Conselho Nacional do MP, que está vinculado à corregedoria, a partir de agora a reclamação poderá ser arquivada ou se transformar em um Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD).
Entre as possíveis penalidades ao promotor, segundo o CNMP, estão demissão ou afastamento, mas podem variar de acordo com a legislação de cada estado. Não há prazos estabelecidos para ser concluída a reclamação disciplinar.
Confira abaixo a integra do acórdão do TJ do RS:
APELAÇÃO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. SUFICIÊNCIA DE PROVAS.
As convergentes declarações das testemunhas estão confortadas pela conclusão do exame de DNA, confirmando que o réu manteve relação sexual com a ofendida, sua filha, menor de 14 anos de idade, o que configura de forma indubitável o delito tipificado no art. 217-A do CP.
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. REDIMENSIONADA.
- Pena-base reduzida, afastando o vetor culpabilidade.
- Tratando-se de duas majorantes previstas na parte especial, impõe-se a aplicação do disposto no art. 68, parágrafo único, do CP, o qual prevê a incidência de apenas uma das causas de aumento de pena.
Recurso parcialmente provido.
Apelação Crime
Sétima Câmara Criminal Nº 70070140264 (Nº CNJ: 0224220-15.2016.8.21.7000)
Comarca de Júlio de Castilhos J. .
APELANTE M.P. ..
APELADO ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, em por maioria, em rejeitar as preliminares de ofício, do Presidente, que declarava a nulidade da sentença no tocante a análise das circunstâncias do artigo 59 do CP. No mérito, à unanimidade, em dar parcial provimento ao recurso, reduzindo a pena privativa de liberdade para 17 anos de reclusão, mantidas as demais disposições da sentença, determinando a retificação do PEC. Determinam a expedição de ofício ao Conselho Nacional do Ministério Público, com remessa de cópias deste acórdão e do cd de fl. 70, a fim de apurar a responsabilidade funcional do promotor de justiça Theodoro Alexandre da Silva Silveira, bem como ao Procurador-Geral de Justiça para as providências necessárias; a remessa de cópia deste acórdão e também do cd de inquirição da vítima à Corregedoria-Geral da Justiça, para que seja examinada a responsabilidade funcional da Magistrada que atuou na solenidade; bem como, transitada em julgado esta decisão, remessa de cópia do acórdão à vítima e a seu representante legal, por meio de oficial de justiça.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores Des. Carlos Alberto Etcheverry (Presidente e Revisor) e Des. José Antônio Daltoé Cezar.
Porto Alegre, 31 de agosto de 2016.
DES.ª JUCELANA LURDES PEREIRA DOS SANTOS,
Relatora.
RELATÓRIO
Des.ª Jucelana Lurdes Pereira dos Santos (RELATORA)
O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra J. L. D. S., nascido em 09.10.77, como incurso nas sanções do art. 217-A, por diversas vezes, em continuidade delitiva, combinado com o art. 226, inc. II, ambos do CP, na forma da Lei nº 8.072/90 e do art. 7º, inc. III, da Lei nº 11.340/06, de acordo com o seguinte fato delituoso:
Desde o mês de janeiro de 2011 até o mês de outubro de 2012, em diversos horários e locais, alguns na Rua Humberto Onófrio, 149, Vila Castelo Branco, nesta Cidade, o denunciado J.L.D.S., por diversas vezes em caráter reiterado e continuado, manteve conjunção carnal e praticou atos libidinosos com sua filha A.S.D.S., menor de 14 (catorze) anos, conforme certidão de nascimento da fl. 6.
No período de tempo assinalado, por diversas vezes, de modo reiterado e continuado, o denunciado manteve relações sexuais e praticou atos libidinosos com sua filha. Para tanto, convidava a menina para fazer viagens de caminhão com ele, oportunidade em que estacionava o veículos em locais ermos. Aí, então, despia a jovem e começava a passar as mãos pelo seu corpo (seios, pernas e nádegas), até que consumava o ato sexual, penetrando-a. Tal fato repetiu-se todas as vezes que o acusado levava a filha para viajar com ele, tendo ocorrido, inclusive, em sua própria residência, quando o réu mandava a genitora da menina sair para pagar as contas. Como consequência dos abusos, a vítima restou grávida.
O exame de conjunção carnal da fl. 25 comprova que a vítima não é mais virgem.
O agente é pai da vítima, conforme certidão de nascimento da fl. 6.
Recebida a denúncia em 05.03.13 (fl. 38), o réu foi citado (fls. 40/41), e apresentou resposta, por meio de advogado constituído (fls. 42/48).
Em 08.09.14, foi juntado aos autos o laudo de investigação de paternidade envolvendo as partes (fls. 125/127).
Em 20.04.15, foi decretada prisão preventiva do réu (fl. 193), a qual foi efetivada em 27.04.15 (fl. 196).
Na instrução, foram ouvidas a vítima e 05 testemunhas, e interrogado o réu (fls. 68/70, 96/98, 108/109, 205/207). Os debates foram substituídos por alegações escritas (fls. 216/220 e 260/262).
A sentença (fls. 268/275), publicada em 05.05.16, julgou procedente a denúncia, condenando o réu como incurso nas sanções do art. 217-A, caput, por 05 vezes, combinado com os artigos 71, 226, inc. II, e 234-A, inc. III, todos do CP, na forma do art. 7º, inc. III, da Lei nº 11.340/06, à pena de 27 anos de reclusão.
O réu foi intimado pessoalmente da sentença, e manifestou interesse em recorrer (fls. 280/282).
A defesa apresentou razões recursais, postulando a absolvição por insuficiência de provas suficientes. Subsidiariamente, requereu a conversão do julgamento em diligência para a realização de novo exame de DNA; a redução da pena-base para o mínimo legal e a aplicação de apenas uma das majorantes previstas na parte especial do CP, conforme determina o art. 68, parágrafo único, do CP (fls. 287/293).
O recurso foi recebido (fl. 283) e contrarrazoado (fls. 294/299).
Nesta instância recursal, o Ministério Público manifestou-se pelo desprovimento da apelação (fls. 301/307).
É o relatório.
VOTOS
Des.ª Jucelana Lurdes Pereira dos Santos (RELATORA)
Presentes os requisitos legais de admissibilidade, conheço do recurso.
Não prospera o pedido de absolvição, pois a convergente prova testemunhal e o resultado do exame de DNA conduzem à certeza quanto à existência do fato e sua autoria.
Ao ser ouvida na fase policial, a vítima, com 13 anos na data do fato, relatou com detalhes o ocorrido, dizendo que seu pai a levava para viajar de caminhão e insistia para manterem relações sexuais. Em certa ocasião, ele tirou sua roupa e praticou conjunção carnal com ela. A partir dai, as viagens passaram a ser frequentes e ela era sempre compelida a manter relações sexuais com seu pai, o que somente cessou quando ele desconfiou que ela estivesse grávida (fl. 10).
Nesta oportunidade ela já havia conversado com as conselheiras, ao menos 02 vezes, quando apresentou relatos coerentes, sempre apontando o réu como o autor fato, demonstrando apenas medo em contrariar ou magoar sua genitora (CD, fl. 98), cujo sentimento é comum em vítimas que se sentem responsáveis por causar dor e transtornos a familiares que ama.
De outra banda, em juízo, já decorrido mais de ano e tendo ocorrido o aborto, a vítima alterou a versão dos fatos, afirmando que não queria que seu pai fosse preso. Afirmou ter engravidado de um namorado de colégio, mas não quis fornecer o nome dele (CD, fl. 70, 03min e 03seg). alegou ter acusado o pai de estupro porque tinha muito medo que ele descobrisse a gravidez e a maltratasse (CD, fl. 70, 1º vídeo).
Entretanto, neste mesmo depoimento, ela disse que ele era um ótimo pai e tinham um bom relacionamento antes da acusação, inclusive assumindo a posição dúbia, ora dizendo que ele era bom, ora que era mau o que evidencia o conflito interno vivido pela vítima.
Desse modo, verifica-se que ela negou a prática do estupro na intenção de proteger o ofensor pelos laços familiares que os unem, por se sentir culpada pela prisão dele, por destruir a família, o que se mostra compreensível, tendo em vista a ambivalência sentimental da criança/adolescente, a qual fica dividida entre o amor que sente pelo genitor e a raiva pela violência física ou emocional exercida por ele.
Ademais, não é raro em delitos desta espécie, os próprios parentes atribuírem à vítima a responsabilidade pela desestruturação da família, hipótese em que a criança/adolescente procura se retratar das acusações, visando a restabelecer a unidade familiar antecedente à descoberta dos abusos.
A este respeito, pertinente a transcrição do ensinamento de Maria Helena Mariante Ferreira e Maria Regina Fay de Azambuja:
Tal fenômeno [da retratação] ocorre quando a criança/adolescente revela o abuso para alguém em quem confia, mas passa, posteriormente, a negá-lo por motivos diversos: por pena, pois, apesar do abuso, tem afeto pelo abusador; por medo, resultante de ameaças; ou por perceber o impacto que a revelação provoca em sua vida familiar, entre os quais conflitos, sentimentos e ansiedade. Os conflitos ocorrem entre os pais, ou entre a mãe e o companheiro, ou envolvem outros familiares; o sofrimento é causado à mãe, à pessoa que o abusou, a outros familiares a que ama, ou é causado a si mesmo pela desagregação familiar, ou por sentir culpa por haver provocado tudo isso […][1].
Essa é a situação dos autos. Aqui se percebe que a vítima não contava com o apoio da mãe, a qual somente possuía interesse em resolver o ‘problema’, preocupando-se apenas em como iria sobreviver caso o réu fosse preso e como sua família seria vista na comunidade, o que foi confirmado por Jaine, irmã da vítima, a qual também sofreu abusos do réu e acabou saindo de casa em razão do comportamento omissivo da genitora (CD, fl. 70, 2º, 3º e 4º vídeos).
Somam-se a isso os relatórios do Conselho Tutelar os quais informaram o desconforto sofrido pela vítima, a qual não aguentava mais o quadro no qual estava inserida, tendo negado o fato em juízo porque “seria a melhor maneira para acabar com tudo isso”, concluindo as conselheiras pela presença de indícios de que ela estava sendo manipulada a dar respostas que não prejudicassem o réu (fl. 169), até porque se encontrava subjugada a ele, tanto na condição de filha como na de vítima, uma vez que constantemente intimidada e ameaçada (fl. 189).
Destarte, não convence a retratação da vítima, tampouco a negativa de autoria (CD, fl. 207), pois o conjunto probatório é robusto para demonstrar que o réu manteve relações sexuais com a própria filha.
Veja-se que os abusos sofridos pela vítima somente vieram à tona devido a uma denúncia anônima recebida pelo Conselho Tutelar, informando que a menina estava grávida do seu pai, o qual possuía histórico de abusos familiares.
O cenário era tão complicado que, inicialmente, a menina teve dificuldades em contar o ocorrido às conselheiras tutelares, ficando bastante nervosa e em silêncio. Posteriormente ela passou a contar aos poucos, relatando que seu pai a tratava de forma ríspida e a proibia de sair de casa. Depois falou que ao criar formas de moça, ele começou a tratá-la bem e passou a convidá-la para viajar de caminhão. Nessas ocasiões, ele a constrangia a manter relações sexuais, dizendo que iria ensiná-la a ser uma mulher “quente” na cama e a tratar bem um homem.
Após a realização de exames e confirmada a gravidez, a menina se mostrou perturbada, não entendendo o que a criança seria dela: seu filho ou seu irmão. Diante disso, ela e a mãe manifestaram interesse na realização do aborto, o qual foi autorizado judicialmente.
Concluído este, a família imaginou que o infortúnio estivesse resolvido e tudo ficaria como antes, então, certamente, a vítima foi induzida a retratar-se. E isso lhe custou uma inaceitável humilhação em audiência, pois o Promotor de Justiça que atuou na solenidade a tratou como se ela fosse uma criminosa, esquecendo-se que só tinha 14 anos de idade, era vítima de estupro e vivia um drama familiar intenso e estava sozinha em uma audiência.
Aliás, a menina necessitava de apoio de quem conhece estes tristes fatos da vida e não de um acusador, pois a função do Promotor de Justiça é de proteção da vítima e, no caso, ao que tudo indica, ele se sentiu ludibriado pela menina, por ter opinado favoravelmente ao aborto e, posteriormente, ela não confirmar a denúncia. O pior de tudo isso é que contou com a anuência da Magistrada, a qual permitiu que ele fosse arrogante, grosseiro e ofensivo com uma adolescente. Um verdadeiro absurdo que necessita providências!
Superada esta fase desnecessária, pois mesmo com a retratação a prova é suficiente para a condenação, já que o auto de exame de corpo de delito comprovou que a vítima não era mais virgem e apresentava vestígio de conjunção carnal recente (gravidez): “na palpação do baixo ventre percebe-se a presença de uma tumuração globosa, de consistência cisto-elástico pastosa acima da sínfise púbica, compatível com útero gravídico” (fl. 28).
Como se isso não fosse o bastante, o exame de DNA postulado pela defesa (fl. 47) apontou o réu como pai biológico do filho da vítima, indicando a probabilidade matemática de 99,99999576% (fl. 125/127).
Entendo impertinente o pedido de realização de nova perícia (fl. 290), porquanto ausente vício aparente acerca do modo como a perícia foi confeccionada, metodologia utilizada para conduzir a respectiva avaliação ou acerca das conclusões, de modo que a alegação de erro material no laudo (fl. 289), aliás, sequer apontado, não foi demonstrado, logo, não há porque invalidar a perícia.
Desse modo, indubitável o abuso praticado pelo réu contra a vítima, não passando despercebido, ainda, o histórico dele em se envolver com meninas pertencentes ao seu grupo familiar, tanto que já passou as mãos no corpo e nas partes íntimas da sua enteada Jaine (CD, fl. 70, 4º vídeo), e teve um relacionamento com sua prima-irmã Janice, engravidando-a quando tinha 17 anos de idade (CD, fl. 70, 5º vídeo), mostrando-se necessária a intervenção judicial para frear seus instintos sexuais, os quais, por certo, não serão contidos por vontade própria, até porque ele já demonstrou não ter autocontrole sobre seus atos, evitando, assim, que outras crianças sejam alvos do seu comportamento.
No que tange à dosimetria da pena, esta foi fixada nos seguintes termos (fls. 272v/274v):
Analisando as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, verifica-se que o réu é primário. Inexistem informações sobre a conduta social do acusado. Quanto à personalidade do agente, não há prova técnica, apesar dos depoimentos indicarem que ele já tem histórico de abuso com outra enteada. Motivos próprios à espécie delitiva. A vítima, com seu comportamento, não contribuiu para a prática do fato. As consequências foram gravíssimas, pois ocasionou a gravidez da vítima e, posteriormente, motivou um aborto. Ademais, a conduta do agente apresenta grau de reprovabilidade – culpabilidade – acima do tolerado, pois aproveitou-se do fato de ser pai para querer “ensinar a filha a ser caliente”, a saber agradar um homem na cama, para ter um bom marido. Com base nestas duas circunstâncias judiciais desfavoráveis, fixo a pena base em 09 anos de reclusão.
Não há agravantes nem atenuantes.
Na segunda fase, estão presentes três causas de aumento.
Inicialmente, pela incidência do art. 226, inciso II do Código Penal, aumento a pena em metade, passando-a para 13 (treze) anos e 06 (seis) meses de reclusão.
Por conseguinte, tendo em vista que a vítima engravidou do réu em razão dos abusos, reconheço a causa de aumento do art. 234-A, inciso III do CP, e aumento a pena em metade, tornando-a provisória em 20 (vinte) anos e 03 meses de reclusão.
Por fim, pela continuidade delitiva, procedo ao acréscimo da pena no patamar de 1/3, em razão de estar comprovada a prática de, no mínimo, cinco relações sexuais ilícitas.
[…]
Assim, torno a pena definitiva em 27 (vinte e sete) anos de reclusão.
Em face da gravidade e da natureza dos crimes praticados, aplico como efeito da sentença a incapacidade para o exercício do poder familiar sobre a filha e vítima A.S.D.S., conforme art. 92, II do Código Penal.
Descabe falar em substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, bem como em suspensão condicional da pena, porquanto ausentes os permissivos legais.
A pena deverá ser cumprida em regime inicialmente fechado, conforme art. 33, § 2o,, “a” do Código Penal c/c § 1o do art. 2o da Lei 8.072/90, com redação dada pela Lei 11.464/2007.
Hígidos os motivos ensejadores da prisão cautelar, assim como a gravidade do fato, mantenho a prisão do réu, inclusive para assegurar a proteção da ofendida, nos termos da Lei 11.340/06.
Condeno o réu ao pagamento das custas processuais, nos termos do art. 804 do Código de Processo Penal.
Intime-se a representante legal da vítima acerca da presente decisão, nos termos do art. 201, §2º, do Código de Processo Penal.
A pena-base foi fixada 01 ano acima do mínimo legal, considerando desfavoráveis os vetores culpabilidade e as consequências do crime.
Com efeito, as consequências do crime merecem destaque, pois a conduta do réu resultou na gravidez da vítima, a qual apesar da tenra idade (13 anos) teve de se submeter a procedimento abortivo, sabidamente causador de consequências tanto físicas quanto emocionais para o resto da vida.
No entanto, o fato de o pai ter praticado o crime contra a filha já foi utilizado para configurar a majorante do art. 226, inc. II, do CP, por isso afasto o destaque negativo do vetor culpabilidade, sob pena de bis in idem.
Desse modo, reduzo a pena-base para 08 anos e 06 meses de reclusão.
Ausentes agravantes e atenuantes mantenho a pena provisória em 08 anos e 06 meses de reclusão.
Na 3ª fase da dosimetria da pena, o sentenciante exasperou a pena de metade duas vezes, em razão do art. 226, inc. II, do CP, pois o acusado é pai da vítima, e também em face do art. 234-A, inc. III, do CP, porque do crime resultou gravidez.
Nesse ponto, a sentença merece reforma, porque em se tratando de duas majorantes previstas na parte especial, deve ser aplicado o disposto no art. 68, parágrafo único, do CP, o qual prevê a incidência de apenas uma das causas de aumento de pena, prevalecendo a que mais aumente.
Nesse sentido, colaciono precedente do 4º Grupo Criminal desta Corte:
EMBARGOS INFRINGENTES. CRIMES SEXUAIS. ESTUPRO. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. CONCURSO DE CAUSAS DE AUMENTO. Na aplicação do parágrafo único do artigo 68 do Código Penal, deve o juiz orientar-se pelo princípio da proporcionalidade, devendo, no concurso de causas de aumento ou diminuição previstas na parte especial do Código Penal, limitar-se a um só aumento ou uma só diminuição. EMBARGOS INFRINGENTES ACOLHIDOS. POR MAIORIA. (Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70067732677, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Conrado Kurtz de Souza, Julgado em 24/03/2016). (grifei)
Destarte, no caso dos autos, é de ser aplicada apenas a majorante do art. 226, inc. II, do CP, a qual prevê o aumento da pena de metade, afastando a causa de aumento prevista no art. 234-A, inc. III, do CP, até porque a gravidez da vítima já foi utilizada para agravar a pena-base, de modo que redimensiono a pena para 12 anos e 09 meses de reclusão.
Ao final, a pena foi adequadamente exasperada à razão de 1/3, pela continuidade delitiva, por isso torno o apenamento definitivo em 17 anos de reclusão.
Assim, voto no sentido de dar parcial provimento ao recurso, reduzindo a pena privativa de liberdade para 17 anos de reclusão, mantidas as demais disposições da sentença, determinando a retificação do PEC.
Oficie-se ao Conselho Nacional do Ministério Público, com remessa de cópias deste acórdão e do CD de fl. 70, a fim de apurar a responsabilidade funcional do Promotor de Justiça Theodoro Alexandre da Silva Silveira, bem como ao Procurador-Geral de Justiça para as providências necessárias; encaminhe-se cópia deste acórdão e também do CD de inquirição da vítima à Corregedoria-Geral da Justiça, para que seja examinada a responsabilidade funcional da Magistrada que atuou na solenidade; e transitada em julgado esta decisão, encaminhe-se cópia deste acórdão à vítima e a seu representante legal, por meio de oficial de justiça.
Des. Carlos Alberto Etcheverry (PRESIDENTE E REVISOR)
Divirjo em parte da relatora.
AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DOS CRITÉRIOS UTILIZADOS PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE.
A ausência de explicitação do peso atribuído, na fixação da pena-base, a cada uma das aferidoras do art. 59 do CP considerada desfavorável ao réu caracteriza a ausência de fundamentação, contrariando o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal. Ademais, não é admissível que se exija da parte que tente adivinhar a motivação do sentenciante. Exigir que o magistrado apresente fundamentação completa, ainda que sucinta, ao sentenciar, constitui autêntica homenagem a quem exerce a jurisdição, na medida em que, na verdade, reforça a legitimidade da sua função: tanto mais legitimado ele se torna, como juiz, pelo fato de tornar públicas todas as razões pelas quais decide o que decide. A jurisdição não é uma seita esotérica e hermética, que procura granjear o respeito e a reverência dos seus fiéis por se colocar ao abrigo de uma aura de mistério. A sentença não é um enigma a ser decifrado, a menos que se admita que o sentenciante possa, a pretexto de exercitar o que tem se chamado eufemisticamente de exercício de “uma certa discricionariedade”, ter razões de foro íntimo.
O juízo singular, ao aquilatar os vetores do art. 59 do Código Penal, considerou desfavorável mais de uma circunstância judicial. Diante disso, afastou a pena-base do mínimo legal em 01 ano, sem, contudo, esclarecer qual o quantum de aumento para cada uma das aferidoras.
Essa ausência de fundamentação, no meu entender, impede o julgamento do recurso. O procedimento adotado pelo sentenciante impossibilita a devida análise do apenamento no segundo grau, porquanto se desconhece que fração do aumento corresponde a cada aferidora tida como negativa. É possível, por exemplo, que o sentenciante tenha atribuído igual peso a cada uma delas. Todavia, esta é apenas uma dentre as várias hipóteses possíveis. Como saber, nessas circunstâncias, qual foi o caminho percorrido pelo juízo a quo?
Não é suficiente, portanto, para atender ao princípio da fundamentação das decisões judiciais, que o juiz simplesmente afirme que há circunstâncias que desfavorecem o réu, sem que enuncie o peso atribuído a cada uma delas no aumento da pena.
A não ser assim, o recorrente, seja ele quem for – defesa ou Ministério Público –, vê-se na contingência de discutir a decisão com base unicamente em suposições sobre a motivação do sentenciante. Em suma, um exercício de adivinhação, ao qual se vê submetido inclusive esta Corte. No caso do réu, verifica-se clara violação do direito de defesa.
Carente a decisão atacada, portanto, de fundamentação, contrariando a Constituição Federal, que, em seu art. 93, IX, determina que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Impunha-se, consequentemente, que fosse enunciado como, precisamente, foi fixada a pena-base.
A propósito do tema, manifesta-se de forma lapidar Piero Calamandrei:
“A motivação das sentenças é certamente uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como em um croqui topográfico, o itinerário lógico percorrido pelo juiz para chegar à sua conclusão: em tal caso, se a conclusão está errada, pode-se facilmente descobrir, através da motivação, em qual etapa do seu caminho o juiz perdeu a orientação.” [2]
Nessa linha, aliás, é o voto da Desa. Naele Ochoa Piazetta, proferido na apelação crime n.º 70053797825, que atende aos critérios de fundamentação ora postulados:
“Sem retoques quanto ao reconhecimento, apenas entendendo que cada uma[3] das moduladoras deve distanciar a basilar em 06 (seis) meses de seu mínimo legal, assim melhor atendendo aos imperativos de repreensão e prevenção atrelados à pena.” (sem grifo no original)
Uma objeção possível à anulação do processo poderia ser a de que acarreta prejuízo à celeridade na tramitação do feito.
A celeridade, contudo, colocada balança em prato oposto ao da ampla defesa (art. 5º, LVI, da CF), pesa bem menos, contanto, é claro, que se admita que não possuem pesos idênticos.
Existe, também, outra espécie de celeridade cuja defesa se poderia tentar: é aquela proporcionada pela rapidez na feitura da sentença, proporcionada pela não discriminação do peso atribuído a cada uma das circunstâncias negativas. Não me parece que o benefício proporcionado por esse expediente seja tão vantajoso assim, e muito menos que compense o prejuízo sofrido pelo réu (quanto a este último ponto, aliás, tenho absoluta certeza). Também acho improvável que o réu fique exultante com a rapidez desta forma imprimida ao processo, ao preço de não ter a menor idéia de como a pena foi fixada.
Além do mais, essa técnica de redação me parece constituir um perigoso precedente. O que impediria que, para abreviar ainda mais o tempo de elaboração da sentença, se passasse, por exemplo, que o magistrado, em vez de analisar com a minúcia necessária a prova dos autos, simplesmente dissesse que ela é robusta e harmônica o suficiente para permitir um juízo condenatório? Há muito a recear, parece-me, quando, resolvendo-se conflitos entre princípios constitucionais, dá-se prioridade àqueles menos essenciais à preservação do Estado de Direito.
A manutenção da sentença mesmo sem a devida fundamentação, por fim, poderia se dar apenas no caso de a resposta à pergunta que segue ser peremptoriamente afirmativa:
– pode o defensor, não tendo sido discriminado o peso atribuído a cada circunstância negativa, criticar a sentença com a mesma amplitude e qualidade argumentativa que seriam possíveis se ele não precisasse fazer um eventualmente exaustivo exercício de adivinhação?
No que me diz respeito, não posso, em sã consciência, responder a essa pergunta com um “sim”.
Diante do exposto, de ofício, voto por declarar a nulidade da sentença no tocante à análise das circunstâncias do artigo 59 do CP, determinando o retorno dos autos à origem para que a fixação da pena seja refeita, com a explicitação do peso atribuído a cada uma das circunstâncias negativas na fixação da pena-base, restando prejudicada a análise da apelação.
Preliminar de impossibilidade de adivinhar os critérios utilizados pelo juízo a quo para fixar a pena-base
Vencido na preliminar de nulidade da sentença, não resta alternativa a este relator senão a de reduzir a pena-base ao mínimo legal, pois eventual tentativa de análise da adequação do aumento efetuado em razão de circunstâncias desfavoráveis implicaria, para este magistrado, um exercício de adivinhação, transformando-me, por assim dizer, em uma espécie de pitonisa togada.
Vencido também nesta preliminar, acompanho a relatora no mérito.
Isso posto, divirjo da eminente relatora para, em preliminar de ofício, declarar a nulidade da sentença no tocante a análise das circunstâncias do artigo 59 do CP, determinando o retorno dos autos à origem para que a fixação da pena seja refeita, com a explicitação do peso atribuído a cada uma das circunstâncias negativas na fixação da pena-base, restando prejudicada a análise da apelação. Vencido nas preliminares, acompanho a relatora quanto ao mérito.
Des. José Antônio Daltoé Cezar
Acompanho integralmente a eminente Relatora, assim desacolhendo a preliminar deduzida pelo Revisor.
No processo em exame, entendo deva fazer algumas ponderações, em relação à atuação do Promotor de Justiça, bem como da magistrada que presidiu a audiência realizada dia 20 de fevereiro de 2.014 (CD de fl. 70), na qual foi ouvida a vítima, uma adolescente que então tinha apenas 14 anos de idade.
Para dizer o menos, foi lamentável.
Inicio por transcrever parte do diálogo travado na ocasião:
Juíza: todo teu nome.
Vit: A. S. S.
Juíza: Teu endereço
Vit: (inaudível), 59
Juíza: Castelo Branco?
Vít: Castelo Branco
J:Amanda tem uma acusação aqui contra o J. L. S, ele é teu pai? Diz aqui que entre o mês de janeiro de 2011 até o mês de outubro de 2012, por várias vezes, ele teria te estuprado. Inclusive, tu já foi ouvida e foi autorizado o aborto em relação a isso. Eu queria que tu contasse o que aconteceu, se é verdade isso, como tudo aconteceu, até porque teve uma morte também né, foi autorizado um aborto, que foi feito em Porto Alegre (…) disso.
Vít: eu vim aqui eu falei o que aconteceu…
Juíza: fala mais alto
Vit.: …e depois de um tempo eu falei pra mãe e contei pra ela que não tinha acontecido nada disso, que eu acusei ele sem ter feito nada pra mim, por causa que eu fiquei com medo, porque eu tinha ficado grávida e eu não queria a criança, queria prosseguir meus estudos, e aí ele ia ser preso por uma coisa que não fez.
J: tu tá dizendo que…. pelo Ministério Público
MP: A. tu tá mentindo agora ou tava mentindo antes
Vit: … mentindo antes, não agora
MP; tá, assim ó, tu pegou e tu fez, tu já deu um depoimento antes (…), tu fez eu e a juíza autorizar um aborto e agora tu te arrependeu assim? tu pode pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é auto suficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Sabe que tu é uma pessoa de muita sorte Amanda, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na FASE, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá. Porque tu é criminosa… tu é. (silêncio)…. Bah se tu fosse minha filha, não vou nem dizer o que eu faria…. não tem fundamento. Péssima educação teus pais deram pra ti. Péssima educação. Tu não aprendeu nada nessa vida, nada mesmo. Vai ser feito exame de DNA no feto. Não vai dar positivo nesse exame né?….. ou vai?… Vamo A. tu teve coragem de fazer o pior, matou uma criança, agora fica com essa carinha de anjo, de ah... não vou falar nada. Não vai dar positivo esse exame de DNA, vai dar negativo né!? Vai dá o quê nesse exame Amanda?
Vít: negativo
MP: tá e quem é o pai dessa criança?
Vit: é um namorado que eu tinha no colégio.
MP: como é o nome desse namorado?
V: ah, isso não vem ao caso agora
MP: como não vem ao caso Amanda? Tu fez a gente matar uma pessoa e agora diz que não vem ao caso, quem tu pensa que tu é…quem é esse cara?
V: eu não quero envolver ele
Juíza: tu não tem….
MP: tu não tem querer, tu fez a gente matar uma pessoa. Tu vai dizer o nome desse cara. Quem é esse cara?
V: eu não quero responder
MP: tu vai responder em outro processo. Eu vou me esforçar o máximo pra te por na cadeia A. se não for pronunciar o nome desse piá. Tô perdendo até a palavra. Tu vai pro CASE se não der o nome desse piá. Como é o nome desse piá… (silêncio)…. vamo A. além de matar uma criança tu é mentirosa? Que papelão heim? Que papelão… só o que falta é aquele exame dar positivo, só o que falta! Agora assim ó, vou me esforçar pra te “ferrá”, pode ter certeza disso, eu não sou teu amigo.
O que se percebe, em relação ao Dr. Promotor de Justiça, que além de não ter lido atentamente o processo, embora se disponha a participar de feito em que se investiga a prática de violência sexual contra crianças e adolescentes, não tem conhecimento algum da dinâmica do abuso sexual, bem como confunde os institutos de direito penal, além de desconsiderar toda normativa internacional e nacional, que disciplina a proteção de crianças e adolescentes.
Explico.
Não leu atentamente, pois não percebeu que a vítima tinha uma família completamente disfuncional, pai abusador e mãe omissa, que já abusado de outra filha, e, como bem sinalado pela eminente Relatora:
“o histórico dele em se envolver com meninas pertencentes ao seu grupo familiar, tanto que já passou as mãos no corpo e nas partes íntimas da sua enteada Jaine (CD, fl. 70, 4º vídeo), e teve um relacionamento com sua prima-irmã Janice, engravidando-a quando tinha 17 anos de idade (CD, fl. 70, 5º vídeo)”
Nesse cenário, era previsível, até mesmo esperado, que a vítima tentasse uma retratação, pois seu pai era o ínico provedor da família, situação que preocupava muito sua mãe.
Quem conhece o mínimo necessário sobre a dinâmica do abuso sexual, sabe que situações como aquelas apresentadas neste processo, quando a vítima, por razões das mais diversas, muda versão para inocentar o abusador, são comuns e até mesmo previsíveis, não tendo nada a ver com seu caráter, coragem ou mesmo sinceridade.
Uma das razões pode ser o sentimento de traição, como bem leciona Christiane Sanderson (ABUSO SEXUAL EM CRIANÇAS , M. Books do Brasil Editora Ltda., p. 192/193):
“Um importante impacto traumatológico do ASC consiste na manipulação, pelo abusador, da confiança e vulnerabilidade da criança, levando-a a um profundo sentimento de traição. Esse é particularmente o caso em que o abusador é alguém de confiança, com o um membro da família, um amigo ou um adulto, no qual a criança depositou confiança e de quem ela depende para suas necessidades básicas”.
No mesmo sentido é a lição de Luciane Pötter (VITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA INFANTO JUVENIL E VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR, Editora Jus Podium, 2ª edição, 2.016, p. 208):
“Portanto, desde o primeiro encontro com a vítima criança ou adolescente (que se supõeou de fato tenha sido sexualmente abusada), deve-se buscar a melhor forma de comunicaçãosem ignorar toda pressão externa e sugestões que provavelmente já recebeu. …. Em outras palavras, uns desqualificaram suas experiências enquanto os outros a responsabilizaram pelo que aconteceria com seus agressores, aumentando seus sentimentos de culpa. Em todos os casos, estão assustadas, confusas e sentindo que fizeram algo de errado”.
Equivocou-se também o Dr. Promotor de Justiça, gravemente, quando referiu à vítima que ela seria uma criminosa, teria matado uma pessoa, como se ela tivesse praticado um homicídio.
O feto humano, embora seja protegido, por institutos de direito civil e penal, ainda não é uma pessoa, o que somente ocorrerá quando vier a nascer, com vida.
Existe na legislação pátria a figura do aborto legal – Código Penal, art. 128 – que é um fato típico, mas não é ilícito – o qual corresponde à figura dos autos.
Fosse o pai da vítima quem nela provocou a gravidez, o que efetivamente se confirmou, fosse outro homem, qualquer fosse ele, teria a vítima direito a postular o aborto legal, pois tendo ela engravidado aos treze anos de idade, foi vítima de estupro, na forma estabelecida no artigo 217-A do Código Penal.
Portanto, a irresignação apresentada pelo Dr. Promotor de Justiça na solenidade, dizendo que iria “ferrá-la” e não descansaria enquanto ela não dissesse quem a engravidou, e que faria o possível para colocá-la na cadeia, apresentou-se ilegal e inadmissível.
Lembremos, ela, uma menina com quatorze anos quando do depoimento, era vítima de um estupro, concorde o não o Dr. Promotor de Justiça com a figura do aborto legal.
Sobre a não-observância do direito da vítima em relatar o que com ela ocorreu, lembro o que dispõe o artigo 12, da Convenção Internacional Sobre os Direitos da Criança, de 1.989, que foi ratificada pelo Brasil:
- É assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.
A Organização das Nações Unidas, através da Resolução nº 20/2.005, aprovou as diretrizes sobre a justiça, em assuntos concernentes às crianças vítimas e testemunhas de delitos, como marco útil que pode ajudar aos Estados Membros a melhorar a proteção de que gozam as crianças que são vítimas e testemunhas de delitos no sistema de justiça penal.
Nesse mesmo documento, no inciso XI, dispôs sobre o direito da criança ser protegida de sofrimentos durante o processo judicial:
- Utilizar procedimentos idôneos para as crianças, incluídas salas de entrevista concebida para elas, serviços interdisciplinares para crianças vítimas de delitos integrados em um mesmo lugar, salas de audiência modificadas tendo em conta as crianças testemunhas, intervalo durante o testemunho de uma criança, audiências programadas para a idade e amadurecimento da criança, um sistema apropriado de notificação para que a criança só compareça perante o Tribunal quando seja necessário, e outras medidas que facilitem o testemunho da criança.
Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe, no artigo 18, que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.
Na audiência na qual a vítima foi inquirida, quando se viu ela injuriada, caluniada, ameaçada e constrangida, percebe-se claramente que o seu direito de falar sobre a experiência não observou, em nenhum momento, o dispositivo legal acima referido.
E quando isso tudo se passou na audiência de inquirição da vítima, principalmente pela a ação do Dr. Promotor de Justiça, percebeu-se também que a magistrada que presidiu a solenidade, omitiu-se totalmente, permitindo que isso acontecesse na sua presença.
Feitas essas considerações proponho a V. Exas.:
- seja cópia deste acórdão e também do CD de inquirição da vítima, encaminhados ao Conselho Nacional do Ministério Público, para que seja examinada a responsabilidade funcional do Promotor de Justiça que atuou na solenidade;
- seja cópia deste acórdão e também do CD de inquirição da vítima, encaminhados à Corregedoria-Geral da Justiça, para que seja examinada a responsabilidade funcional da Magistrada que atuou na solenidade;
- seja cópia deste acórdão e também do CD de inquirição da vítima, encaminhados à Procuradoria-Geral da Justiça, para que seja examinada a responsabilidade criminal do Promotor de Justiça que atuou na solenidade, uma vez que é aparente a ofensa ao artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja ação penal é incondicionada, o que difere da ameaça, injúria e calúnia;
- Transitada em julgado esta decisão, seja encaminhada, através de oficial de justiça, cópia deste acórdão à vítima e a seu representante legal, para que se cientifique que a 7ª Câmara Criminal lamenta profundamente a forma como foi ela recepcionada pelo sistema de justiça, e que tem ela, se quiser, o direito de postular indenização pecuniária junto ao Promotor de Justiça, uma vez que mais do que falta grave, agiu este com dolo, ao lhe impor ilegais constrangimentos.
DES. CARLOS ALBERTO ETCHEVERRY – Presidente – Apelação Crime nº 70070140264, Comarca de Júlio de Castilhos: “POR MAIORIA, REJEITARAM AS PRELIMINARES DE OFÍCIO, DO PRESIDENTE, QUE DECLARAVA A NULIDADE DA SENTENÇA NO TOCANTE A ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS DO ARTIGO 59 DO CP. NO MÉRITO, À UNANIMIDADE, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO, REDUZINDO A PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PARA 17 ANOS DE RECLUSÃO, MANTIDAS AS DEMAIS DISPOSIÇÕES DA SENTENÇA, DETERMINANDO A RETIFICAÇÃO DO PEC. E DETERMINARAM A EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO AO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, COM REMESSA DE CÓPIAS DESTE ACÓRDÃO E DO CD DE FL. 70, A FIM DE APURAR A RESPONSABILIDADE FUNCIONAL DO PROMOTOR DE JUSTIÇA THEODORO ALEXANDRE DA SILVA SILVEIRA, BEM COMO AO PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA PARA AS PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS; A REMESSA DE CÓPIA DESTE ACÓRDÃO E TAMBÉM DO CD DE INQUIRIÇÃO DA VÍTIMA À CORREGEDORIA-GERAL DA JUSTIÇA, PARA QUE SEJA EXAMINADA A RESPONSABILIDADE FUNCIONAL DA MAGISTRADA QUE ATUOU NA SOLENIDADE; BEM COMO, TRANSITADA EM JULGADO ESTA DECISÃO, REMESSA DE CÓPIA DO ACÓRDÃO À VÍTIMA E A SEU REPRESENTANTE LEGAL, POR MEIO DE OFICIAL DE JUSTIÇA”
Julgador(a) de 1º Grau: ULISSES DREWANZ GRäBNER
[1] FERREIRA, Maria Helena Mariante; AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. [et. al.]. Violência sexual contra crianças e adolescentes [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 239-240.
[2] CALAMANDREI, Piero. Elogio dei giudici scritto da um avvocato. Le Monnier, Florença, 1959, 4ª edição, p. 169. Texto original: “La motivazione delle sentenze è certamente uma grande garanzia di giustizia, quando riesce a riprodurre esattamente, come in uno schizzo topografico, l’itinerario logico che il giudice há percorso per arrivare alla sua conclusione: in tal caso, se la conclusione è sbagliata, si può facilmente rintracciare, attraverso la motivazione, in quale tappa del suo cammino il giudice há smarrito l’orientamento.” Tradução minha.
[3] Observe-se que, se fosse seguido o entendimento de que é desnecessária a individualização do peso atribuído a cada circunstância negativa, a pena-base teria sido simplesmente elevada em um ano.
Fonte: TJRS