Por unanimidade o STF  considerou que perguntas sobre vida sexual e comportamento perpetuam a discriminação e a violência de gênero, além de vitimizar duplamente a mulher.

Ação de Descumpriento de Preceito Fundamental ADPF 1.107

A Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu  que o Supremo Tribunal Federal (STF) proíba questionamentos sobre a vida sexual pregressa da vítima e seu modo de vida durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual. O tema é discutido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1107, distribuída à ministra Cármen Lúcia.

A PGR alega que o discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da “concepção odiosa” de que seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela violência sofrida. “Em ambiente que haveria de ser de acolhimento, a mulher vítima de violência passa a ser, ela própria, julgada em sua moral e seu modo de vida, na tentativa da defesa de justificar a conduta do agressor, e sem a reprimenda proporcional pelo Estado”, sustenta.

Outro argumento é o de que, na investigação de crimes relacionados à violência sexual contra a mulher, o consentimento da vítima é o único elemento a ser apreciado. Considerações sobre seu comportamento partem de conduta enviesada e discriminatória e devem ser prontamente contidas e repreendidas.

Para a PGR, essa prática é inconstitucional e deve ser invalidada, impondo-se aos órgãos que conduzem o processo criminal a obrigação de prontamente coibi-la e de responsabilizar quem impõe violência psicológica à vítima.

Decisão do STF 

O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu na quinta-feira (23/05), por unanimidade, que é inconstitucional a prática de questionar a vida sexual ou o modo de vida da vítima na apuração e no julgamento de crimes de violência contra mulheres. Caso isso ocorra, o processo deve ser anulado. O entendimento é de que perguntas desse tipo perpetuam a discriminação e a violência de gênero e vitimiza duplamente a mulher, especialmente as que sofreram agressões sexuais.

De acordo com a decisão, o juiz responsável que não impedir essa prática durante a investigação pode ser responsabilizado administrativa e penalmente. O magistrado também não pode levar em conta a vida sexual da vítima no momento em que fixar a pena do agressor.

O Plenário também ampliou o entendimento para alcançar todos os crimes envolvendo violência contra a mulher, e não somente casos de agressões sexuais.

Machismo estrutural

Os ministros acompanharam o voto proferido pela relatora, ministra Cármen Lúcia, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1107. Na sessão de ontem, ela afirmou que, apesar dos avanços na legislação brasileira em relação às mulheres, essas condutas ainda são reproduzidas na sociedade, perpetuando a discriminação e a violência de gênero.

“É lamentável que, terminando o primeiro quarto do século XXI, nós ainda tenhamos esse machismo estrutural, inclusive em audiência perante o Poder Judiciário”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes, na sessão de hoje, ao apresentar seu voto. “E não há possibilidade de tratar isso com meias medidas. É importante que o Supremo Tribunal Federal demonstre que não vai tolerar mais isso”.

No mesmo sentido, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, ressaltou que o Supremo tem dado a contribuição possível “para enfrentar uma sociedade patriarcal e de machismo estrutural, que se manifesta na linguagem, nas atitudes e nas diferenças no mercado de trabalho”.

Fundamentos da decisão

  1. A Constituição garante a dignidade humana (art. 1º, III) e a igualdade entre homens e mulheres (arts. 3º, I e IV;. 5º, caput e I; e 226, § 5º).
  2. Por isso, a prática de questionar o comportamento e os modos de vida da mulher vítima durante a investigação e o julgamento de processos envolvendo crimes sexuais e de violência contra a mulher viola a Constituição.
  3. Essa prática faz com que se tente culpar a vítima pelo crime, e não o agressor. Ela reforça o preconceito e a discriminação contra as mulheres no país, pois passa a impressão de que crimes sexuais seriam toleráveis quando o comportamento da mulher for diferente do que é socialmente esperado. Ao mesmo tempo, o fato de se investigar a vida passada da mulher em um processo em que ela é a vítima causa mais sofrimento a ela, promovendo a sua revitimização.
  4. Essa prática deve ser proibida não apenas nos processos de investigação e julgamento de crimes sexuais, mas em todos aqueles relacionados a crimes de violência contra a mulher.
  5. Por tudo isso, não se pode tolerar que as partes façam perguntas ou considerações sobre a vida sexual ou modos de vida da vítima ou que os juízes considerem esses fatores para calcular a pena do agressor. Se o descumprimento dessa proibição prejudicar a vítima, o julgamento pode ser anulado. Foi decidido, ainda, que os juízes têm o dever de atuar para impedir essa prática e podem ser responsabilizados se não fizerem isso.

Tese de julgamento

“É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de modo que é vedada eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais (CF, arts. 1º, III; 3º, I e IV; 5º, caput e I; 226,

Confira o resumo do julgamento.

Com STF