Luiz Gama foi uma das personalidades negras mais notáveis do século XIX. Em 1869, quase cem anos antes de Martin Luther King, o poeta, jornalista e advogado se antecipou ao norte-americano e declarou igualmente ter um sonho, um “sonho sublime”, que transparecia também um desejo de igualdade: “as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos”.

Neste Dia do Advogado e da Advogada se deixa à reflexão das leitoras e leitores a trajetória de um advogado de primeira linha na história nacional: Liz Gama, o advogado dos pobres, dos escravos.  Boa leitura.

A vida de Luiz Gama

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no dia 21 de junho de 1830, no estado da Bahia. Era filho de um fidalgo português e de Luiza Mahin, negra livre que participou de diversas insurreições de escravos sendo uma das principais figuras da Revolta dos Malês.

Em 1840, depois que sua mãe foi exilada por motivos políticos, Luís, com apenas 10 anos, foi vendido escravo pelo pai para pagar uma dívida de jogo mo escravo pelo próprio pai.

Transportado para o Rio de Janeiro, foi comprado pelo alferes Antônio Pereira Cardoso e passou por diversas cidades de São Paulo até ser levado ao município de Lorena. Em 1847, quando tinha dezessete anos, Luiz Gama foi alfabetizado pelo estudante Antônio Rodrigues de Araújo, que havia se hospedado na fazenda.

Aos dezoito anos fugiu para São Paulo, em 1848, fugiu, pois sabia que sua situação era ilegal, já que era filho de mãe livre.

Alistou-se na Força Pública da Província ou Corpo de Força da Linha de São Paulo, entidade na qual se graduou cabo e permaneceu até o ano de 1854 quando deu baixa por um incidente que ele classificou como “suposta insubordinação”, já que apenas se limitara a responder insulto de um oficial. Deu baixa no serviço militar em 1854. Dois anos depois voltou à Força Pública.

Em 1850 casou-se e tentou frequentar o Curso de Direito do Largo do São Francisco. Por ser negro, enfrentou a hostilidade de professores e alunos, mas persistiu como ouvinte das aulas. Não concluiu o curso, mas o conhecimento adquirido permitiu que atuasse na defesa jurídica de negros escravos

Gama Escritor

Em 1859, Gama publica em São Paulo seu único livro, Primeiras trovas burlescas (PTB), coletânea de poemas satíricos nos quais denuncia os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade brasileira. Reeditada no Rio de Janeiro em 1861, a novidade editorial e literária ocorre num Brasil escravocrata, independente há menos de 40 anos e em pleno período romântico, durante o qual o negro-escravo despontou como tema na poesia.

Gama projetou-se na literatura em função de seus poemas, nos quais satirizava a aristocracia e os poderosos de seu tempo. Hoje, é reconhecido como um dos grandes representantes da segunda geração do romantismo brasileiro, mas na época enfrentou a oposição dos acadêmicos conservadores.

Apareceu como personagem no teatro – como no drama Calabar (1858), de Agrário de Meneses, primeira peça brasileira a apresentar um herói negro – e no romance, como o atesta Maria ou a Menina Roubada (1852), de Teixeira e Sousa. Neste contexto, Gama fincou uma voz inaugural, a do primeiro autor negro que se enuncia enquanto tal, figura até então ausente da literatura brasileira.

Gama Jornalista

Luiz Gama foi um dos maiores líderes abolicionistas do Brasil. A partir dos anos 1860, Gama dedicou-se exclusivamente ao jornalismo e à militância abolicionista. Em 1869, fundou com Rui Barbosa o Jornal Radical Paulistano, Radical Paulistano, órgão do Partido Liberal Radical, o Correio Paulistano e A Província de São Paulo, e fundou o semanário político e satírico O Polichinelo (1876).

Escreveu para jornais como a Gazeta da Tarde, na qual, entre 1880 e 1882, no qual somou sua voz à dos abolicionistas negros Ferreira de Menezes, André Rebouças e José do Patrocínio.

Em seus artigos, Gama demonstrava como os próprios representantes do Direito violavam as leis em benefício da ordem escravista. No Radical Paulistano, de 1869 a 1870, analisava sentenças e expunha os erros cometidos por juízes corruptos e prevaricadores. Além de apontar “o modo extravagante [como] se administra a justiça no Brasil”, o exercício permitia ao advogado autodidata exibir sua cultura jurídica, vendo-se obrigado a dar “proveitosa lição de direito” aos doutores, embora não fosse ele graduado em jurisprudência, nem tivesse “frequentado escolas”.

Nenhum dos grandes temas nacionais escapou à pena audaz de Gama: Guerra do Paraguai, Questão Religiosa, abolição, monarquia e república. A imprensa foi fundamental para seu ativismo, bem como os laços com a maçonaria, que o apoiou na missão de libertar e garantir os direitos dos escravos.

Gama Advogado Abolicionista

Nos Tribunais, usando de sua oratória impecável e seus conhecimentos jurídicos, conseguiu libertar mais de 500 escravos, algumas estimativas falam em 1000 escravos.

As causas eram diversas, muitas envolviam negros que podiam pagar cartas de alforria, mas eram impedidos pelos seus senhores de serem libertos, ou que haviam entrado no território nacional após a proibição do tráfico negreiro em 1850.

O abolicionismo paulista ganhou contornos específicos graças a estratégias inovadoras adotadas por Gama e seu grupo. Uma delas consistiu em desenterrar a lei de 7 de novembro de 1831, que extinguia o tráfico negreiro, para libertar africanos “ilegalmente escravizados”, com a anuência de autoridades que, aos olhos de Gama, participavam de um crime. Certa vez, indignado pela não aplicação daquela lei num processo de que se encarregava, o advogado engalfinhou-se com o juiz Dr. Rego Freitas. Este lhe negara o depósito judicial de um africano, comprovadamente chegado ao Brasil após 1831. Os leitores paulistanos acompanharam a briga pelos jornais. Gama não se inti­midou perante o juiz e, irritado, esbravejou, “perante o país inteiro”, instando-o a “cingir-se à lei” e a “cumprir seu dever”, para o que era “pago com o suor do povo, que é o ouro da Nação”.

Luiz Gama também ganhou notoriedade por frases como, por exemplo, as seguintes:

“ao matar seu senhor, o escravo agia em legítima defesa”.

“Perante o Direito, é justificável o crime do escravo perpetrado na pessoa do Senhor”.

Atitudes como esta lhe renderam graves represálias, mas a partir daí sua projeção pública só aumentou. Escravos de São Paulo e de outras províncias recorriam ao advogado, que anunciava em alto e bom som:

Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo violências.

Em carta a Lúcio de Mendonça, o abolicionista fez o balanço de seu abnegado serviço:

[no foro e na tribuna ganho] o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e para os míseros escravos, que em número superior a 500 tenho arrancado às garras do crime.

Dai que Gama fosse conhecido como o “amigo de todos”, tinha em casa uma caixa com moedas que dava aos negros em dificuldades que vinham procurá-lo.

Faleceu em 24 de agosto de 1882 e foi sepultado no Cemitério da Consolação, na presença de 3.000 pessoas numa São Paulo de 40.000 habitantes. O poeta Raul Pompéia (1863-1895) imortalizou Luiz Gama e seus feitos escrevendo na ocasião:

” (…) não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados, implorando libertação, como quem pede esmola; outros mostrando as mãos inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor; outros… inúmeros. E Luís Gama os recebia a todos com a sua aspereza afável e atraente; e a todos satisfazia, praticando as mas angélicas ações, por entre uma saraivada de grossas pilhérias de velho sargento. Toda essa clientela miserável saía satisfeita, levando este uma consolação, aquele uma promessa, outro a liberdade, alguns um conselho fortificante. E Luís Gama fazia tudo: libertava, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas do desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sobra de lucro…E, por essa filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bom…Pobre, muito pobre, deixava para os outros tudo o que lhe vinha das mãos de algum cliente mais abastado.”

O Reconhecimento da OAB

Numa reescrita tardia da história, sua designação como rábula mudou. Em 3 de novembro de 2015, Luis Gama recebeu da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 133 anos após a sua morte, o título de advogado.

Saiba mais

AZEVEDO, Elciene de. Orfeu de Carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

FERREIRA, Gabriela Nunes & MOTA, Carlos Guilherme (coords.).Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro (1850-1930). São Paulo: Saraiva/ Fundação Getúlio Vargas, 2010.

GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas e outros poemas. Introdução e organização de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.